31 agosto, 2009

Pincel fotográfico

Não são todos os quadros que deixam evidentes a tinta e o pincel. Olhando a imagem abaixo, você diria se tratar de uma pintura? Não? Pois saiba que a arte que você está vendo não é fotografia, mas sim fruto das incríveis pinceladas da artista Alyssa Monks.

alyssia

Mais fotos... digo, pinturas, no portfolio da moça:

http://alyssamonks.com/port.asp


21 agosto, 2009

Aspas #2

Hoje um conto que eu adoro, de Luís Fernando Veríssimo:




Conto de verão nº 2: Bandeira Branca

Ele: tirolês. Ela: odalisca; Eram de culturas muito diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um montinho de confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro baile de Carnaval.


Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egípcia. Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.Só no terceiro Carnaval se falaram.

-Como é teu nome?

- Janice. E o teu?

- Píndaro.

- O quê?!

- Píndaro.

- Que nome!

Ele de legionário romano, ela de índia americana.

Só no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistério de só se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia é que era sócia.

- Ah.

Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido de imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira Branca, ele veio e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E, quando se despediram, ela o beijou na face, disse -Até o Carnaval que vem- e saiu correndo.

Divisor Horizontal Clássico

No baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até na boca. Na hora da despedida, ele pediu:

- Me dá alguma coisa.

- O quê?

- Qualquer coisa.

- O leque. O leque da bailarina.

Ela diria para a mãe que o tinha perdido no salão.

No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à procura, um havaiano desconsolado. Não sabia nem como perguntar por ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela, às vezes tirando o leque do seu esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile. E ela não apareceu. Marcelão, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com o guaraná. Ele bebeu demais. Teve que ser carregado para casa. Acordou na sua cama sem lençol, que estava sendo lavado. O que acontecera?

- Você vomitou a alma – disse a mãe.

Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e nunca a teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela.

Mas, no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube – e lá estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida.

- Sei lá. Bávara tropical – disse ela, rindo.

Estava diferente. Não era só o corpo. Menos tímida, o riso mais alto. Contou que faltara no ano anterior porque a avó morrera, logo no Carnaval.

- E aquela bailarina espanhola? – Nem me fala. E o toureiro? – Aposentado.

A fantasia dele era de nada. Camisa florida, bermuda, finalmente um brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos. Todos vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse - Píndaro?! - e todos caíram na risada. Ele viu que ela estava rindo também. Deu uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O Marcelão anunciara que levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas sob as calças da fantasia de sultão. O Marcelão tinha o que ele precisava para encher o buraco deixado pela alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas as ilusões da vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos 30, pelo menos não inteiro. Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo o guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma sucessão de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer foi -pelo menos o meu tirolês era autêntico- e desistiu. Mas, quando a banda começou a tocar Bandeira Branca e ele se dirigiu para a saída, tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para dançarem assim, ela dizendo -não vale, você cresceu mais do que eu- e encostando a cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça no seu ombro.

Divisor Horizontal Clássico

Encontraram-se de novo 15 anos depois. Aliás, neste Carnaval. Por acaso, num aeroporto. Ela desembarcando, a caminho do interior, para visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse -quase não reconheci você sem fantasias-. Ele custou a reconhecê-la. Ela estava gorda, nunca a reconheceria, muito menos de bailarina espanhola. A última coisa que ele lhe dissera fora - preciso te dizer uma coisa-, e ela dissera - no Carnaval que vem, no Carnaval que vem - e no Carnaval seguinte ela não aparecera, ela nunca mais aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro estado, sabe como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o endereço dele, como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não teria onde tomar nota na fantasia de falsa bávara.

- O que você ia me dizer, no outro Carnaval? – perguntou ela.

– Esqueci – mentiu ele.

Trocaram informações. Os dois casaram, mas ele já se separou. Os filhos dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e a filha moram em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil- E a todas essas ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida? E ela pensando: como é mesmo o nome dele? Péricles. Será Péricles? Ele: digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro aos 30, e que ainda tenho o leque? Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu.

(VERÍSSIMO, Luís Fernando. Conto de verão nº 2: bandeira branca. In: Os cem melhores contos brasileiros do século - Organização de Ítalo Moriconi. Objetiva, 2000.)

20 agosto, 2009

Terra

Esse nosso planetinha é cheio de beleza (se bem que nossa natureza humana enxergaria beleza qualquer que fosse a face da Terra).

Nos links abaixo, algumas singularidades de cair o queixo:

47 auroras
15 formações de água e gelo
15 formações de terra
12 formações e fenômenos do fogo e da luz

10 formações de nuvens e cores
10 desertos facinantes
17 fractais encontrados na natureza

Textos em inglês, mas só as imagens já enchem os olhos...

Dica da favorita Luiza Voll

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Updates:

- Nuvens Incríveis

- Cristais de gelo

- Vida nos corais

- Imagens da terra feitas por satélites

10 agosto, 2009

O antro da informção fácil

O post anterior me fez perceber quão duvidosa é a informação que existe na internet. Bem, que o conteúdo da internet não é confiável todos já sabíamos há muito tempo. Mas eu ainda não tinha me dado conta da dimensão do problema.

Sucedeu que eu pesquisei a letra da música “Hier Encore” e, embora não conheça francês, percebi imediatamente que o texto que encontrei não batia inteiramente com a sonoridade das palavras. Assim, “je voulais le bon” aparecia na letra “je pensais le bon”; e “pleurs” estava escrito “peurs”.

Então, obviamente, fui procurar em outras fontes antes de postar, mas qual não foi a minha surpresa ao constatar que 100% dos sites em língua portuguesa continham exatamente a mesma letra e a mesma tradução, incluindo os mesmos erros. Inseri “pleur” (palavra correta) na minha consulta e o Google retornou apenas uma página, em francês, de onde extraí o texto correto que postei.

Ficou claro que alguém certa vez publicou a letra e a tradução e estas foram copiadas ad infinitum pelos demais sites. Eis o problema: nem todos têm o cuidado de conferir a informação antes de passá-la adiante. Não é por outro motivo que circulam pela internet lendas urbanas e textos com a autoria incorreta.

Assim, se o fato ocorreu realmente ou se o texto é mesmo de Luís Fernando Veríssimo ou de Arnaldo Jabor, não importa, contanto que cause essa impressão. E na maior parte das vezes as pessoas crêem mesmo no que lêem, talvez por ingenuidade diante da nova mídia, ou por falta de reflexão.

Tal aberração se deve à facilidade do fluxo de dados numa época em que basta a conjunção das teclas “ctrl+c” e “ctrl+v” para trasladar informações, o que acarreta um mundo baseado muito mais em quantidade do que em qualidade. Assim, a informação contida na internet é muito fácil, mas igualmente fácil é a sua má qualidade.

Está ficando cada vez mais difícil separar o joio do trigo nesse ambiente tão vasto. Trata-se de uma “democracia” muito útil, mas de efeitos colaterais venenosos, uma vez que todos têm a palavra e dizem o que querem protegidos pelo manto do anonimato ou ancorados na pressa, na preguiça e na irresponsabilidade.

Por menos imparciais que sejam as informações das revistas e jornais da mídia impressa, nós pelo menos podemos confiar na sua veracidade até certo ponto, pois o que se costuma manipular é o colorido ou o grau de exposição, e não os fatos em si e sua real existência (falo exclusivamente de acontecimentos, e não do discurso político ou ideológico vertido nesses meios).

Não estamos longe da época em que tudo será previamente suspeito, pois nada estará fora da rede... Nesses tempos a propriedade intelectual será ainda mais abstrata e volátil. Caminhamos para uma era de supremacia da ficção em detrimento do fato, do plágio em detrimento da autoria, do adjetivo em detrimento do substantivo.

Não que a sociedade não possa se adaptar aos novos paradigmas. O perigo é que as mudanças têm sido mais rápidas do que a nossa capacidade de adaptação.

Ainda Ontem

Charles Aznavour é um dos grandes nomes da música mundial. Se considerarmos apenas a França, certamente ele põe no bolso os seus colegas compatriotas, tanto pela interpretação quanto pela composição. Além de possuir uma poderosa voz de tenor, ele compôs cerca de 850 canções, muitas delas com versões em vários idiomas.

Uma das que eu mais aprecio é “Hier Encore”, de 1964, muito bela e triste. A letra registra as tolices de juventude e as esperanças perdidas na passagem veloz do tempo, enquanto a melodia triste acompanha tal amargura com adequação absoluta. Só quem viveu o suficiente como ele pode expressar-se tão bem sobre esse tema.

No vídeo abaixo, ele canta com duas mulheres (suas filhas, segundo o título no YouTube), numa interpretação belíssima dos três. (Será que são mesmo suas filhas? Como um sujeito feio gerou duas gatas como essas? Se for isso mesmo, por certo puxaram à mãe...)


http://www.youtube.com/watch?v=gkc9FWxBl2k

Como tio Márcio é muito bonzinho, entrega logo a letra e tradução no mole para todos os seus dois leitores (a tradução abaixo é ligeiramente diferente da legenda do vídeo, que não é das melhores).

Au revoir, mes chers amis!

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Hier Encore
Ainda Ontem

Hier encore, j'avais vingt ans
Ainda ontem, eu tinha vinte anos
Je carresais le temps et jouais de la vie
Acariciava o tempo e brincava de viver
Comme on joue de l'amour et je vivais la nuit
Como se brinca de amor e eu vivia a noite
Sans compter sur mes jours qui fuyaient dans le temps
Sem considerar meus dias que escorriam pelo tempo

J'ai fait tant de projet qui sont restés en l'air
Fiz tantos projetos que se dissiparam no ar
J'ai fondé tant d'espoirs qui se sont envolés
Alimentei tantas esperanças que se desvaneceram
Que je reste perdu ne sachant ou aller
Que permaneço perdido sem saber aonde ir
Les yeux cherchant le ciel, mais le coeur mis en terre
Os olhos vasculhando o Céu, mas o coração preso à Terra

Hier encore j'avais vingt ans
Ainda ontem eu tinha vinte anos
Je gaspillais le temps en croyant l'arrêter
Desperdiçava o tempo acreditando que o detinha
Et pour le retenir, même le devancer,
E para retê-lo, e até ultrapassá-lo,
Je n'ai fait que courrir et me suis essouflé
Não fiz outra coisa senão correr e acabar cansado

Ignorant le passé, conjuguant au futur
Ignorando o passado, conjeturando sobre o futuro
Je précédais de moi toute conversation
Eu direcionava a mim toda conversa
Et donnais mon avis que je voulais le bon
E opinava sobre o que eu achava ser bom
Pour critiquer le monde avec désinvolture
Por criticar o mundo com desenvoltura

Hier encore j'avais vingt ans
Ainda ontem eu tinha vinte anos
Mais j'ai perdu mon temps a faire des folies
Mas perdi meu tempo a cometer loucuras
Qui ne me laissent au fond rien de vraiment précis
O que não me deixa, no fundo, nada de realmente concreto
Que quelques rides au front et la peur de l'ennui
Exceto algumas rugas na fronte e o medo do tédio

Car mes amours sont mortes avant que d'exister
Porque meus amores morreram antes de existir
Mes amis sont partis et ne reviendront pas
Meus amigos partiram e não mais retornarão
Par ma faute j'ai fait le vide autour de moi
Por minha culpa criei o vazio ao meu redor
Et j'ai gâché ma vie et mes jeunes années
E gastei minha vida e meus anos de juventude

Du meilleur et du pire en jetant le meilleur
Do melhor e do pior, desprezando o melhor,
J'ai figé mes sourires et j'ai glacé mes pleurs
Imobilizei meus sorrisos e congelei meus prantos
Où sont-ils à present, à present, mes vingts ans?
Onde estão agora meus vinte anos?

05 agosto, 2009

Poema do dia

Hoje, na verdade, são dois, de dois grandes poetas. É bom que se leia na ordem apresentada.

O adormecido do vale

(Arthur Rimbaud)

É um canto de verdura onde um riacho canta
Ligando loucamente às ervas farrapos baios
Ou de prata; onde o sol, da montanha que encanta,
Reluz: é um pequeno vale que espuma de raios.

Um soldado jovem, boca aberta, cabeça nua,
E a nuca que o fresco agrião azul envolve,
Dorme; sob uma nuvem, deitado na grama crua,
Pálido no seu leito verde onde a luz chove.

Os pés nas flores, ele dorme. Sorrindo como
Sorriria uma criança doente, está no sono:
Natureza, embala-o bem quente: ele tem frio.

Os perfumes não agitam suas narinas;
Ele dorme ao sol, a mão sobre o peito
Tranquilo. Tem dois buracos vermelhos no lado direito.

O menino da sua mãe
(Fernando Pessoa)

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado-
Duas, de lado a lado-,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho unico, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
“O menino de sua mãe.”

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
“Que volte cedo, e bem!”
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto e apodrece
O menino da sua mãe

03 agosto, 2009